Eleições americanas, a Europa e a nova ordem mundial
Antes que se conheçam os resultados das eleições americanas, importa fazer uma breve análise das suas potenciais implicações no jogo de poder mundial. Corre a teoria de que uma vitória de Kerry poderá significar uma qualquer inversão nas opções da política externa americana. Penso que não.
1. Os Estados Unidos sempre tiveram relações diferentes com o lado oriental do Atlântico. Muito sucintamente, os primeiros 140 anos de coexistência foram marcados por uma curiosa indiferença. Soltos das amarras coloniais, os Estados Unidos dedicaram-se nesse período à expansão do seu domínio territorial. Melhor dizendo, à expansão e à colonização da Federação no sentido do que é o seu desígnio natural: uma entidade coast to coast. Nessa perspectiva, os Estados Unidos delinearam as suas relações com a Europa em função da aquisição de territórios (Louisiana, Novo México, Califórnia, Alaska) e a ocupação de outros (Filipinas, Porto Rico, Cuba).
Do outro lado, a Europa, impedida de exercer um qualquer ascendente sobre o novo parceiro civilizacional, continuou a ser o palco central dos acontecimentos sem incluir os Estados Unidos no cálculo da relação de forças.
Tudo isso mudou em 1914. 1914 foi um prenúncio da nova importância político-económico-militar de uma nova potência emergente. Constituiu um marco, na medida em daí em diante os Estados Unidos passaram a ser um parceiro de jogo ao lado das potências europeias. Eram uma variável não negligenciável.
Em 1941, o mundo mudou para o figurino que, grosso modo, conhecemos até 1989. Os Estados Unidos deixaram de pertencer ao jogo de relações de forças europeu e mundial: passaram a dar o jogo. A supremacia americana revelou-se de ordem demográfica, militar, tecnológica e económica. Em certa medida, até moral. E no rescaldo da IIGG, a Europa passou a ser um corpo político cuja reconstrução e progresso só poderiam ser concebidas (e executadas) debaixo do chapéu-de-chuva americano (Vide Robert Kagan, Paradise and Power).
2. Muito por força do confronto com o bloco soviético, a Europa deparou-se com o seguinte dilema: o continente está devastado e é urgente reconstruí-lo; porém, do outro lado da Cortina surge uma ameça crescente, que sem hesitações aproveitará qualquer momento de fraqueza europeia. A opção natural (instintiva, imediata) foi formar um único bloco com o parceiro americano. Esta parceria (sublinho parceria) foi composta nos seguintes pressupostos e com os seguintes desideratos: (a) a Europa está destruída e precisa de ser reconstruída e protegida; (b) os Estados Unidos têm de fazer face à ameaça soviética de ordem global; (c) o tampão ao expansionismo soviético será a Europa (palco do conflito, portanto), sendo englobada como parte integrante do esforço de guerra americano, assumindo este o papel de defensor do espaço europeu; (d) formando um único bloco aliado, americanos e europeus deverão ter uma visão conjunta e coerente da situação e das opções a tomar.
3. 1989 mudou este cenário de forma radical. Mudaram os pressupostos: a Europa estava já reconstruída e não mais carecia de ser defendida; os Estados Unidos já não tinham um opositor da mesma ordem de grandeza. Consequentemente, deixaram de fazer sentido os objectivos que compunham aquela parceria: os Estados Unidos deixaram tendencialmente (e deixarão cada vez mais) de englobar a Europa como sua zona natural de defesa, ficando esta entidade por sua conta; americanos e europeus deixaram de ter um denominador comum que justificava uma identidade de políticas internas e externas: os interesses podem agora ser abertamente conflituantes. São estes os dados do problema que muita gente não quer ver. É isto que interessa.
4. É neste quadro que se integram as presidências de George Bush, Bill Clinton e George W. Bush. Qualquer um dos três conduziu (com uma ordem crescente de evidência) a política externa americana de acordo unicamente com o melhor interesse americano. Mais: fizeram-no não só em função do melhor interesse americano, como o modus operandi foi definido pelos americanos sem complacência para com as pretensões europeias. Refira-se que a Europa se coloca, clara e deliberadamente, nesta posição. Basta olhar para o conflito nos Balcãs. Foi resolvido pelos americanos, no consulado de Bill Clinton, a pedido da Europa, quando e do modo que se revelou mais vantajoso para os Estados Unidos. E, da mesma forma, entre outros, Bill Clinton bombardeou, sem dar cavaco, o Afeganistão e o Sudão. E já antes, no Golfo, George Bush tinha tratado de Saddam Hussein como bem lhe aprouve.
5. Dito isto, compreende-se a presidência de George W. E decerto se compreenderá que qualquer presidente americano que aí venha não fará diferente. Porque em causa não está a bondade do carácter de fulanos A e B; nem a simpatia que ambos despertam; nem a sensibilidade que um ou outro poderão demonstrar para com certa situação -- como se uma política externa como a americana pudesse ser ditada por tais coordenadas. Em causa estão as variáveis do problema, que são as mesmas: os Estados Unidos são a única potência com capacidade para projectar força, não tendo pejo em fazê-lo quando isso serve os seus interesses. E não há qualquer alteração do enunciado com Kerry.
6. Disse Robert Kagan, na obra acima indicada, que os Estados Unidos vivem num mundo Hobbesiano, ao passo que a Europa vive num mundo Kantiano. Ou seja, para os Estados Unidos as relações internacionais são feitas segundo o critério da lei da força, enquanto que para a Europa existe uma ordem jurídica internacional a que importa obedecer. O problema é que só a Europa vive nesse mundo, e só vive nesse mundo porque durante 50 anos viveu debaixo do tal chapéu-de-chuva americano. Ou seja, como durante 50 anos a Europa foi poupada a qualquer esforço bélico significativo (o trabalho sujo era para os americanos) e como na Europa floresceu o projecto europeu, criou-se uma arreigada convicção que os conflitos devem ser dirimidos apenas com recurso ao ordenamento. Não é de estranhar que a argumentação europeia vá neste sentido: não tendo qualquer projecção militar, só lhe resta desviar a discussão para um campo onde ainda conte para alguma coisa. E são ilucidativas da incapacidade europeia para ler o presente as afirmações dos seus líderes de que é preciso «construir uma nova ordem mundial». Meus caros, ela já existe. Desde 1989.
7. Óbices: vários. Em primeiro lugar, ao redor da Europa existe um mundo com outros valores: e aí a baioneta conta mesmo. A Europa não tem baioneta; e a Europa manda cada vez menos. Em segundo lugar, o tal ordenamento tão acarinhado pela Europa é disfuncional. Foi concebido para um mundo que já não existe: o mundo da Guerra Fria. As instituições existentes não têm aptidões funcionais para desempenhar os papéis que se lhes entrega; nem têm o suposto carácter democrático que está na base do louvor que lhe é tecido.
8. O que deve, pois, ser o futuro? Em primeiro lugar, importa ter presente que os Estados Unidos são só mais um dos agentes da nova ordem mundial. É certo que partilham os nossos valores culturais e políticos -- e isso não é pouco, nos tempos que correm. Mas é só mais um agente, há outros. Temos de estar preparados para lidar com todos eles nos termos em que eles entendem. Além de sermos vistos como um parceiro económico essencial, temos de nos recolocar como um agente político e militar incontornável. Como sugerem Kagan e Michael Walzer (A Guerra em Debate), a Europa tem algo de muito bom entre as mãos: este mundo Kantiano é, de facto, uma coisa boa. Mais racional; causador de menos sofrimento. Mas não podemos, sob pena de colocarmos em risco o nosso futuro, utilizá-lo com todos os nossos vizinhos: apenas com aqueles que estiverem dispostos a usar essas mesmas regras. Para os demais, teremos de recorrer aos métodos antigos. É um retorno parcial a um mundo que ficou lá bem atrás: é uma espécie de retorno ao jus gentium romano. É este o desafio europeu; é um desafio de mentalidades.
9. Em suma, o resultado das eleições é perfeitamente indiferente para o objectivo europeu de mudar o mundo em que vivemos. Esse, já mudou em 1989. Se o queremos mudar para algo diferente, somos nós que temos de ter essa iniciativa. A bola está do nosso lado. Temos de deixar de ser reacção: temos de passar a ser acção.
Jagoz | terça-feira, novembro 02, 2004 |
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