Espiral da história
«SR. PRESIDENTE DO MINISTÉRIO:
Duas palavras apenas, neste momento que V. Exa., os meus ilustres colegas e tantas pessoas amigas quiseram tornar excepcionalmente solene.
Agradeço a V. Exa. o convite que me fez para sobraçar a pasta das Finanças, firmado no voto unânime do Conselho de Ministros, e as palavras amáveis que me dirigiu. Não tem que agradecer-me ter aceitado o encargo, porque representa para mim tão grande sacrifício que por favor ou amabilidade o não faria a ninguém. Faço-o ao meu País como dever de consciência, friamente, serenamente cumprido. Não tomaria, apesar de tudo, sobre mim esta pesada tarefa, se não tivesse a certeza de que ao menos poderia ser útil a minha acção, e de que estavam asseguradas as condições dum trabalho eficiente.
V. Exa. dá aqui testemunho de que o Conselho de Ministros teve perfeita unanimidade de vistas a este respeito e assentou numa forma de íntima colaboração com o Ministério das Finanças, sacrificando mesmo nalguns casos outros problemas à resolução do problema financeiro, dominante no actual momento. Esse método de trabalho reduziu-se aos quatro pontos seguintes:
a) que cada Ministério se compromete a limitar e a organizar os seus serviços dentro da verba global que lhes seja atribuída pelo Ministério das Finanças;
b) que as medidas tomadas pelos vários Ministérios, com repercussão directa nas receitas ou despesas do Estado, serão previamente discutidas e ajustadas com o Ministério das Finanças;
c) que o Ministério das Finanças pode opor o seu «veto» a todos os aumentos de despesa corrente ou ordinária, e às despesas de fomento para que se não realizem as operações de crédito indispensáveis;
d) que o Ministério das Finanças se compromete a colaborar com os diferentes Ministérios nas medidas relativas a reduções de despesas ou arrecadação de receitas, para que se possam organizar, tanto quanto possível, segundo critérios uniformes.
Estes princípios rígidos, que vão orientar o trabalho comum, mostram a vontade decidida de regularizar por uma vez a nossa vida financeira e com ela a vida económica nacional.
Debalde porém se esperaria que milagrosamente, por efeito de varinha mágica, mudassem as circunstâncias da vida portuguesa. Pouco mesmo se conseguiria se o País não estivesse disposto a todos os sacrifícios necessários e a acompanhar-me com confiança na minha inteligência e na minha honestidade – confiança absoluta mas serena, calma, sem entusiasmos exagerados nem desânimos depressivos. Eu o elucidarei sobre o caminho que penso trilhar, sobre os motivos e a significação de tudo que não seja claro de si próprio; ele terá sempre ao seu dispor todos os elementos necessários ao juízo da situação. Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar.
A acção do Ministério das Finanças será nestes primeiros tempos quási exclusivamente administrativa, não devendo prestar larga colaboração ao Diário do Governo. Não se julgue porém que estar calado é o mesmo que estar inactivo.
Agradeço a todas as pessoas que quiseram ter a gentileza de assistir à minha posse a sua amabilidade. Asseguro-lhes que não tiro desse acto vaidade ou glória, mas aprecio a simpatia com que me acompanham e tomo-a como um incentivo mais para a obra que se vai iniciar».
28 de Abril de 1928
Jagoz | terça-feira, maio 24, 2005 | |
Memories
Recordei-me ontem, na situação mais improvável.
Meados de Novembro, à tarde. Na praia do Sul, deserta de gente e com a companhia de gaivotas pela areia. Silêncio humano. O céu encoberto, o mar rugindo e uma morrinha salgada empurrada pela maresia contra a cara. Nas mãos, Temor e Tremor. Anoitece, volto para cima com o azul a escurecer, as luzes a acenderem. Como que caminhando num presépio, ruminando no que li. Sem ver ninguém até chegar lá acima, onde compro uns queques e passeio pela vila, escurecida e húmida. Semi-vazia, autêntica. Entro num tascoso perto do jogo da bola. Reencontro amigos.
Pontos altos da vida.
Jagoz | quarta-feira, maio 18, 2005 | |
Resolver a questão
Flanando pela nossa oferta televisiva, deparei-me ontem com um debate (?) acerca do referendo sobre a despenalização do aborto. Falava a nossa ilustre arquitecta Helena Roseta. E queixava-se do «extraordinário» facto de «andarmos há 30 anos para resolver isto do aborto». Ele é atrasos, ele é obstáculos «e no fim nunca mais resolvemos isto». Debrucemo-nos sobre a honestidade do argumento.
Nos últimos 30 anos, foi aprovada uma lei que possibilita a realização do aborto; a lei foi posteriomente modificada; e, finalmente, foi submetida à consulta popular, por via de referendo, a possibilidade de se alterar uma vez mais a legislação vigente. O povo recusou a iniciativa. Perante este percurso (de 30 anos) a senhora arquitecta Helena Roseta conclui: «isto está por resolver».
Eis um eloquente exemplo de como se faz o debate democrático em Portugal e do profundo respeito que certa classe política nutre pelas ideias que não são as suas. O facto de sucessivas maiorias parlamentares e de uma maioria popular referendária se terem oposto à mudança da lei em vigor não é, para Helena Roseta, uma legítima e inatacável expressão da soberania popular ou -- ridículo! -- uma manifestação do regular funcionamento de um sistema democrático que cumpre mansamente respeitar. Toda a gente sabe -- Helena Roseta sabe! -- que «a democracia é moderna» e isso de ser contra a despenalização do aborto é bafiento e antigo; e que o que é verdadeiramente o espírito do nosso tempo é não deixar a situação num atoleiro -- o estado actual das coisas é, naturalmente, um atoleiro -- e «resolvê-la» -- porque do que se trata é de «resolver» a situação, como se esta fosse uma anódina minudência técnica que, num espírito minimamente iluminado, só admite uma opinião. A soberania parlamentar e a soberania popular só valem, pois, se se manifestarem no sentido correcto. E se não o fizerem, tentar-se-á repetidamente até que se aprenda.
Helena Roseta tem a subtileza, a candura e a fina sensibilidade democrática de D. Pedro IV: «queiram ou não queiram, os Portugueses vão ser livres».
Jagoz | terça-feira, maio 03, 2005 | |