Ronald Reagan: Um (esquecido) Herói do Nosso Tempo
Ronald Wilson Reagan morreu em 5 de Junho de 2004, na véspera do sexagésimo aniversário do desembarque aliado na Normandia. Lamenta-se o seu desaparecimento, esperado que era há muito o seu resgate à Doença de Alzheimer. Quanto ao título desta evocação, furtou-se a esse outro esquecido vulto da política portuguesa e europeia: Francisco Lucas Pires. Este escreveu há anos, num suplemento especial do Independente, um belo elogio de Reagan, cujo mote ora se recupera.
Numa altura em que a Velha Europa deriva no Atlântico, afastando-se suicidariamente dos EUA, e enveredando por sentimentos primários de ressabiamento – imbuídos de uma latente inveja da liderança económica e política americana – é fácil radicar a incompreensão continental pelos grandes desígnios da América do nosso tempo na sua deturpada visão de Reagan.
A Velha Europa, ainda muito refém do seu elitismo e presunção de superioridade cultural, literalmente esnobou do presidente mais adorado dos EUA, ridicularizando-o e reduzindo-o à caricatura de político-actor. Pura incompreensão do mestre ancião que vê o seu jovem discípulo ultrapassá-lo, e se mostra ainda incapaz de apreender o essencial da experiência americana, esse radical fascínio, para tantos dos mais deserdados em qualquer parte do mundo, que o Green Card continua a exercer.
Longe da espessura intelectual de folha de papel que lhe imputam, Reagan é dos personagens políticos mais complexos da segunda metade do século XX: começou por ser Democrata antes se converter ao Republicanismo, era divorciado e filho de um pai com problemas de alcoolismo, mas exprimia uma fé inabalável nas virtudes da família; tinha origens muito humildes, mas nunca alentou ressentimentos contra os ricos; raramente ia à missa, mas veiculava e defendia uma religiosidade profunda; era um excelente cómico e orador de improviso e não apenas um bom leitor de discursos encomendados. Muitos ignoram certamente os primeiros termos desta contraposição.
Como Presidente, não era especialmente trabalhador, acusava o peso da idade, e dizem os próximos que dormia mais do que os seus antecessores. Mas fez o podia fazer de melhor: inspirar uma nação inteira com os seus discursos, transmitir-lhe esperança com o seu humor, mostrar-lhe respeito nas suas variadas peregrinações. Estava solidamente alicerçado na América profunda, que o reelegeu esmagadoramente, e encarnou-a ainda, no Rancho del Cielo onde esgotou a sua existência.
Não se prostituiu politicamente, prometendo o que sabia de antemão não ir cumprir. Quando em eleições afiançou reduções de impostos cumpriu-as, mesmo sob a crítica de estar a beneficiar os mais ricos e prejudicar o défice orçamental. Como é diferente de outros… Estes, até como meros actores credíveis muito teriam a aprender com Reagan.
Também na política internacional Reagan foi um vencedor nato. Recuperou, como ninguém, o excepcionalismo de inspiração wilsoniana, brilhantemente exposto por Kissinger na sua Diplomacy: era um crente nas virtudes universais da liberdade política e económica, em que investiu um desavergonhado proselitismo. Arriscou forte e não desiludiu. Ao ameaçar com a Guerra das Estrelas contra o Império do Mal ganhou a Guerra-Fria e iniciou o desarmamento nuclear, num dos mais bem sucedidos bluffs da história. A sua espada foi forte, mas mais forte ainda foi a sua pena: era o Great Communicator.
Como conviria hoje à Alemanha lembrar o amigo americano que, com mísseis soviéticos apontados à MittellEurope, teve a coragem de dizer “There is only one Berlin” e “Mr. Gorbachev: tear down this wall”, bem como de visitar o cemitério de Bitburg, onde jaziam, entre dois mil mortos de guerra alemães, quarenta e oito oficiais das SS Nazis, ajudando uma nova geração de germânicos na redenção do opróbrio. Tal como à França, essa grande herdeira da tradição de intriga e hipocrisia política de Richelieu, seria útil a recordação das palavras de Reagan, proferidas na Normandia, aquando do quadragésimo aniversário do desembarque em Omaha Beach: “We will always remember. We will always be proud. We will always be prepared, so we may always be free”. Quando dois terços dos alemães, em sondagem recente, confessam nenhuma dívida sentir pela ajuda americana à reconstrução e reunificação alemã, e em França florescem os panfletários anti-EUA, bem se pode dizer que o dia do favor é a véspera da ingratidão.
Ronnie, designação carinhosa e tributário do amor do seu povo, encarnou o melhor do idealismo americano: por isso é tão querido pelos que partilham do American Dream, por isso foi tão ressentido por quem é, cada vez mais, uma potência de segunda categoria. A nação americana, generosamente, desculpou-lhe até o escândalo Irão-Contras: era o “Teflon President”, nada o atingia, pois estava-lhe já reservado um alto lugar no panteão. Continuou ainda, na sua pátria, a receber constantes lembranças: o seu nome consagra há já vários anos o aeroporto de Washington e em 2002 recebeu a Medalha de Ouro do Congresso. Fora dos EUA, a popularidade de Reagan será certamente maior entre o baixo operariado de Gdansk que apoiou nos dias difíceis da luta pelo sindicalismo livre do que nas altas chancelarias franco-alemãs. Não podia estar melhor acompanhado, portanto.
Reagan, nas palavras de Francisco Lucas Pires, “é mesmo um dos grandes fundadores do actual futuro”. Ele legou-nos um mundo mais próspero, mais livre, e necessariamente mais complexo. Esse é o nosso mundo. Este é o Mundo de Reagan.
O Liberal | domingo, setembro 26, 2004 |
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